sexta-feira, 4 de abril de 2014

Nossa gente careta e covarde

"Nasci muitos anos depois do golpe e tenho quase a mesma idade da nova República. Como ela, tropecei muitas vezes em uma ordem autoritária anterior. Uma ordem que ensinava a calar e obedecer 

Matheus Pichonelli, CartaCapital

Quando nasci, em outubro de 1982, o Brasil estava prestes a fechar o ciclo da abertura política lenta, gradual e segura (mais lenta do que segura, como mostrou o atentado ao Riocentro) inaugurado anos antes pela ditadura civil-militar. O presidente era João Baptista Figueiredo, figura de feição bovina que detestava o cheiro do povo e dizia preferir a fragrância de seus cavalos. Fazia muito sentido: o povo não votava em presidente. E, enquanto não votava em presidente, podia permanecer confinado nos estábulos das periferias e dos morros, de onde só desciam quando a fome apertava.

Naqueles anos, havia um desejo cada vez mais intenso a pedir que a relação entre governantes e governados tivesse um mínimo de nexo. Esta relação, aprenderíamos depois, era estabelecida a partir do direito básico de ejetar do poder, pelo voto, quem tratasse seus representados sem uma mínima dignidade equina (algo ainda comum nos dias de hoje, mas com consequências eleitorais consideráveis ao representante, ao seu partido, à sua coalizão).

Os apelos das Diretas Já daquele período, no entanto, não frutificaram. E o primeiro presidente civil desde o golpe militar foi eleito em 1985 por voto indireto: coube ao Congresso escolher o representante do Brasil. Mas nosso representante morreu antes e não chegou a assumir o posto. Quem assumiu foi o seu vice, José Sarney, resultado de uma controversa aliança entre a velha e a nova ordem.

Somente aos sete anos, quando já sabia chutar latinha de coca-cola sem tropeçar, vi o primeiro presidente eleito tomar posse, em 1990. Mas, caiporas como um velho personagem de Machado de Assis, quebramos o nariz até quando caímos de costas: eu e meus contemporâneos levaríamos mais oito anos para ver o primeiro presidente eleito completar o seu mandato. Tinha, então, 16 anos. A democracia da nova República era quase uma companheira de adolescência: tínhamos quase a mesma idade, estávamos sempre às turras com as velhas ordens e ainda batíamos a cabeça no mundo para poder compreender suas nuances.

Éramos vulneráveis como nossa epiderme a acusar as primeiras espinhas. Mais do que isso, tínhamos um pé ainda preso em uma estrutura anterior.

Uma estrutura que, no país das soluções negociadas, são levadas na bagagem como lastros não descartados. E pesam. Os estragos em nossas vidas eram consideráveis. Em casa, na escola ou nas igrejas que frequentávamos, éramos sempre espectadores, nunca debatedores. Não sabíamos falar. Argumento era petulância e questionamento, malcriação. Aprendíamos que o mundo era assim porque era assim: a política era suja porque políticos eram maus, e era bom que não nos metêssemos com essa gente porque não era assunto para nós. Não se falava em política, a não ser com enfado: “no fim eles são todos iguais”. E todos os escândalos políticos que vinham à tona - porque o ambiente permitia um certo grau de transparência e investigação - desembocavam em uma velha sentença: “no tempo da ditadura não tinha nada disso”. Se tinha ou não, jamais saberemos: quem investigou ou se calou ou foi calado.

Não por acaso, uma frase recorrente fazia parte da nossa formação: “política, assim como futebol e religião, não se discute”. Quem disse?

Nas escolas, éramos o resultado de um tempo de utilitarismo cínico.

Estudávamos porque queríamos ser alguém e nada mais. Sentávamos, ouvíamos, obedecíamos e fazíamos provas para passar no vestibular, trabalhar, amarrar o burro no poste, engordar, criar filhos, animais, tomar cerveja na hora do jogo e, como na música, caminhar para a morte pensando em vencer na vida. Não à toa, os melhores alunos eram quase sempre associados à obediência; muitos, para ser alguém, tiveram de militar em outros terrenos: o arrivismo, o carreirismo e a delação corriqueira dos amigos transgressores. Nossas crises de incompreensões diante do mundo eram sinais de encrenca prontos a serem aniquiladas pelo entretenimento disponível na programação regular da tevê, um depositário de estupidez a falar com um público disperso e despolitizado.

Para encontrar encrenca bastava querer ser um pouco mais do que cidadãos dóceis. Éramos livres, afinal, e o que mais nós, jovens de classe mediana do interior, poderíamos querer da vida? Íamos ao clube, jogávamos futebol, desfilávamos com tênis novos para as meninas, tirávamos carteira de motorista aos 18 anos, íamos às casas noturnas, dançávamos, fazíamos as provas, passávamos nos vestibulares, e a vida corria em linha reta. Aquilo era a plenitude: não comprar briga com ninguém e não se envolver com a vida pública. Parecia um ótimo negócio, como atestou ainda ontem o coronel reformado do Exército Paulo Malhães em seu assustador depoimento à Comissão Nacional da Verdade no Rio: “Matei o quanto foi possível. Não me arrependo. Se o sujeito tivesse ficado em casa com a mulher e os filhos, não teria morrido”.

Recado dado é recado entendido. E este recado estava exposto em todo canto – no depoimento do torturador, foi apenas verbalizado.

Por isso não tínhamos a cultura do debate. Já na faculdade, a simples proposta de debate entre estudantes era sinônimo de chateação. Aprendíamos a duras penas, mas maioria de nós queria apenas chegar em casa antes do rush. E pegar logo o diploma, viesse como viesse, sem grandes percalços a caminho do mercado de trabalho. Quanto mais perto da vida adulta, mais os protestos contra o estado das coisas se aproximava do melindre. Era o flerte com o fracasso, e poderíamos ser tudo, menos fracassados.

Passamos a adolescência quase inteira, portanto, com uma sensação de liberdade associada a uma vida de sossego e sem confronto. Não sabíamos quase nada sobre as leis recém-promulgadas. Não sabíamos quais leis nos protegiam. Nem como surgiam as leis. Nem sobre quem vigiava a execução das leis. Nem sobre direitos de minorias. Aceitávamos o mundo como ele era: branco, masculino e heteronormativo. Como poderia ser diferente, se quem nos ensinava/criava/protegia não estava acostumado a contestar? Se quem nos ensinava havia aprendido durante anos os benefícios da obediência? Se quem nos ensinava foi ensinado em um tempo em que quem não obedecia estava desaparecido, calado, apavorado, perseguido e enterrado em valas até hoje desconhecidas. Quem ensinava transmitia à geração seguinte, a geração da transição, que havia um mundo em linha reta e fora dessa linha havia um terreno sujo e desvirtuado. Para não sair da linha, vivíamos em contrição: ouvíamos o padre para dizer amém, os pais para ganhar atenção, os professores para ganhar nota, os chefes para ganhar dinheiro.

Quase nunca reivindicamos nada, a não ser lanches melhores e mais baratos na cantina. Ou notas maiores. Ou mensalidade menos imorais. Mas o pano de fundo era o mesmo da estrutura anterior. Éramos treinados e orientados para tocar a vida segundo uma lógica pragmática: se a farinha era pouca e eu garantia o meu quinhão primeiro, azar do mundo. Daí nosso descaso com tudo o que nos atrapalhava o caminho. Daí nosso horror à pobreza e à cultura popular, muitas delas espalhadas no entorno de nossas casas e escolas.

Éramos perfeitos analfabetos funcionais em matéria de participação da vida pública. Não tínhamos a menor noção sobre nossos direitos civis, sociais e políticos, a não ser a chatice de levantar cedo uma vez a cada quatro anos para escolher, sem muita convicção, um nome que nos representaria pelos próximos quatro anos sob protestos tímidos que morriam na mesa do bar.

Por onde olhávamos, a única frase que ouvíamos era: “não gosto de política, política é um nojo, não me meto com isso”. Era a forma eufemística de confessar uma incapacidade: estávamos há tanto tempo sem usar aquela geringonça que não sabemos para o que ela servia. Por isso era tão raro conhecer alguém que simplesmente abrisse o jornal de vez em quando sem ser para conferir as fotos das festas e casamentos da cidade.

Levamos tempo para aprender a nos mobilizar. Para dizer em tom de voz mais alto o que aceitávamos e o que não aceitávamos. Para formatar movimentos em favor da dignidade de minorias, ainda hoje acusadas de coitadismo. Esses movimentos tomam musculatura conforme as gerações se sucedem e as referências se distanciam de um passado de ignorância assentida. Um passado que forjou na covardia tantos seres de apatia patológica.

Vendo as tentativas de reeditar as marchas das famílias e o medo no rosto dos fantasmas dos velhotes inimigos que morreram ontem, penso como a cultura do medo, do nós contra eles, do mundo dividido, do denuncismo, do mero utilitarismo, da negação de verdades históricas é ainda um peso herdado de um tempo fundado no pânico, no grito, nos escombros e nos tapetes. A ignorância, refúgio de quem prefere uma vida sem sentido a uma vida de confronto, se espalhou como um tumor. Manifesta-se na demofobia, comum nos dias atuais, de quem aceita a existência de cidadãos de primeira e segunda categoria. E parte do mesmo pressuposto de quem há 50 anos tomou o poder e espalhou o terror em nome de um bem maior: a população é simplesmente incapaz de tomar as próprias decisões.

Subestimados, nos afastamos da vida pública. E até hoje sentimos a dificuldade de ouvir, debater e confrontar – no máximo, manifestamos nosso dever cívico cantando o hino nacional de vez em quando ou compartilhando frases-feitas em memes de Facebook. Nas correntes de redes sociais, a nova ágora do debate moderno, rezam animações simplórias a retratar que todo tucano é coxinha e todo petista, corrupto. No meio não existe nada. Pudera: passados tantos anos do golpe, é como se não estivéssemos preparados para encarar um mundo cinza, sem heróis ou vilões, de contradições e nuances.

Pensar dá trabalho. Debater sangra. Ouvir contrapontos tira pedaço.

Entre tantos serviços prestados pelos generais, nenhum foi tão bem executado quanto a propagação da ideia de que somos apenas agentes passivos de uma história que nos escapa. E que toda forma de pensamento ou ação será sempre um desvio em direção ao esporro.

*Matheus Pichonelli é editor assistente do site de CartaCapital. Esse texto é parte de uma série de artigos sobre os 50 anos do golpe de 64

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