Ou carta à presidenta Dilma Rousseff
Escrever para a Folha de S. Paulo não enobrece ninguém!
Pelo contrário, Chico. Mancha o nome da pessoa. Agora que você se
demitiu desse jornal, por não poder expor sua opção política pela
candidatura Dilma, vamos conversar. Aconteceu comigo também em 2001,
quando da primeira eleição do Lula à presidência.
Quanto tempo faz? Eu também era o que se chamava de “colunista” de
opinião do caderno Cotidiano. Quanto tempo faz? Mas, veja: a história
não se repete agora nem como tragédia nem como farsa. A história se
repete como descaramento, como safadeza mesmo, hipocrisia dessa mídia
golpista.
Aconteceu também, há poucos anos, com Maria Rita Kehl, não foi? Se não
me engano, no jornal O Estado de S. Paulo. Os dois “veículos de
comunicação” pactuam de novo o complô censor e golpista. Lá no meu caso,
em 2001, a coisa teve menos repercussão porque, afinal, não sou tão
importante quanto você e Maria Rita. Além do que, você também é da TV,
não? Um cara pop. Aparece muito mais, e tal. E Rita é uma personalidade
intelectual do mais alto nível (além de loira, o que, já de cara, dá
muito mais repercussão aqui no Sudeste racista!).
Olha, eu até queria que essa carta tivesse um pouco de repercussão
(queria que chegasse na presidenta!). Mas vai ser mínima, cara. Talvez
circule um pouco pelas redes sociais, minimamente, porque eu não me
publico mais nem me divulgo. Então, não tenho repercussão nenhuma! E,
agora, que não temos mais, nem você nem eu, a tribuna de um jornal tipo
FSP, imagine, quem vai ler essa carta? (Gargalhe!). Kkkkkkkkkkkkk! Quem
se importa, afinal, com essa “mer...” dessa Folha de S. Paulo? Quem
precisa dessa “bos...” pra escrever ou publicar algo? Peço desculpas
pelos palavrões, mas eu não aguento não. Como jornalismo é m mundo
baixo, do qual me lembro com enjoo ainda hoje, evoca palavrões na minha
fala.
Cara, nem sei porque escrevo pra você essa carta, se mal nos conhecemos.
Falei com você umas três vezes na vida, talvez. E isso não é uma carta
de solidariedade, não. Ninguém precisa de solidariedade porque deixou de
escrever nesse jornal.
Escrevo talvez porque me deu uma enorme vontade de gargalhar quando
soube que o caso se passa agora também com você. Gargalhar por causa da
importância que ainda se dá a esse jornal e a outros, e à Rede Globo e
às redes todas da mídia golpista. Cara, é muita gente querendo ainda
escrever na Folha, aparecer na Folha, no Globo, na Globo, na pqp! É de
intelectual a artista e político! É de secretário de governo a ministro,
a prefeito e a assessor disso e daquilo! É por essas e outras que essa
cambada de golpistas age como se fossem eles os donos do mundo, impunes
que se sentem, protegidos pelo interesse econômico que representam!
Chamei esse texto aqui de “ou carta à presidenta Dilma” porque minha
vontade era fazer chegar à presidenta um recado torto, e ao Lula também:
gente, entendam de uma vez por todas que é preciso regular essa mídia
brasileira! Que já demorou demais, que é pura covardia não peitar essa
cambada de irresponsáveis. Demorou, presidenta! Presidenta Dilma
Rousseff, é preciso garantir as liberdades comunicativas no país, é
preciso pluralismo, democratização da mídia, liberdade de expressão! São
12 anos de acovardamento do PT! E eu sou petista, sim, desde sempre,
desde então. Lula e você, Dilma, são ídolos meus! E olha que eu quase
não tenho ídolos! Só Graciliano Ramos depois de vocês! Ou antes, melhor
dizendo!
Chico. Escrever pra Folha de São Paulo não enobrece ninguém. Não traz
renome. Pelo contrário: a pessoa chafurda ali na lama daquelas vaidades,
das pequenas trapaças, das intrigas internas, das grandes e perigosas
manipulações da informação. Aquilo é um mundo baixo, do qual me lembro
com enjoo ainda hoje. E carrego pecha ainda maior: de ter sido amiga do
dono, um erro de cálculo provocado pela cegueira e pela vaidade da
juventude. Sempre fui péssima nas matemáticas da vida. Sempre só soube
direito português, que não serve pra nada, afinal.
Chico. Em 2001, me chamaram por telefone lá daquele jornal, para dizer
também que eu tinha feito “proselitismo político” pró Lula, e que o
jornal, neutro (Gargalhe! Que fazia campanha aberta pro Serra), não
aceitava aquilo. Gargalhemos novamente. E que, portanto, tudo o que eu
escrevesse dali por diante passaria, antes de ser publicado, pelo
escrutínio da “direção de redação”. E que, além disso, meu texto sairia
apenas de 15 em 15 dias e não mais semanalmente como era. E que,
portanto, meu salário também seria cortado pela metade!
Fiquei pasma! Pela ousadia da tal “direção de redação” chegar para uma
pessoa e dizer uma barbárie dessa! E impor uma censura assim,
descaradamente, presidenta! Censura é isto! Cadê a liberdade de
expressão que eles exigem da senhora? Arrumei a trouxa e fui-me embora
daquela “mer...”, com perdão da palavra.
Do lado de lá, a “direção de redação” também pasmou quando percebeu que
eu, de fato, decidira largar aquilo de uma vez por todas depois de 12
anos! Devem ter achado que eu, por ser negra e pobre, dependente
daqueles honorários de “mer...” que me pagavam, cederia a tamanha
humilhação! Tentaram reverter, tentaram me convencer a ficar, dizendo
que voltavam atrás nas condições, nos salários, talvez na “p...” da
censura.
Não cedi não. E rompi com aquela gente. E prefiro hoje morrer de fome a
ter que escrever uma linha que seja de autoria minha pra essa mídia
golpista. Chico, certamente hoje você é uma pessoa melhor do que ontem.
Transcrevo aqui o texto da “coluna” que foi o estopim do meu pedido de
demissão naquela época (com o Lula já eleito, ao menos isso, graças a
Deus, que eles não engolem até hoje!). Dedico de novo o texto ao
ex-presidente Lula, a minha candidata à reeleição, Dilma Rousseff, e... a
um terceiro ídolo, que eu lembrei que tenho: Marilena Chaui. A você,
agradeço a oportunidade de tocar no assunto, com palavrão e tudo, como
eu queria. Um abraço.
Marilene Felinto, 56, é escritora e tradutora, autora do romance AS
Mulheres de Tijucopapo (1982), pelo qual recebeu o Prêmio Jabuti na
categoria Revelação de Autor, entre outros livros. Trabalhou na imprensa
de 1989 a 2006, na Folha de S. Paulo, Revista Caros Amigos, entre
outras publicações.
Marilene Felinto
São paulo, 15/10/2014
É proibido comemorar
Marilene Felinto
Texto escrito em 29/10/2002, quando da primeira eleição do Lula à presidência da República. Publicado na Folha de S. Paulo).
É PROIBIDO comemorar, mas eu vou comemorar: por minha tia Irene, pelo
menos, que também perdeu parte de um dedo na máquina da fábrica de
tecidos em Paulista (Grande Recife), nos anos 50. Paulista, Caetés,
Buíque, está tudo ali, naquelas vilas perdidas do interior do país, onde
tudo foi sempre seco, matuto, duro e difícil. Buíque (PE), vilarejo
muito perto de Caetés (onde nasceu o presidente eleito Luiz Inácio Lula
da Silva), é onde o escritor Graciliano Ramos passou parte de sua
infância, ele que nasceu em 1892 em Quebrangulo (Alagoas), no mesmo 27
de outubro que Lula.
E ele, Graciliano, que escreveu um romance chamado "Caetés" (1933) e
outro chamado "São Bernardo" (1934), nome da cidade São Bernardo do
Campo, onde o operário virou líder sindical. Está tudo ali. Está tudo
aí, fazendo história universal, quase irreal, quase fictícia de tão
surpreendente.
É proibido comemorar, mas eu vou comemorar: comemorar não uma pessoa,
mas uma idéia, um símbolo. O povo elegeu sua própria cara mais profunda
pela primeira vez. Isso é bom para a auto-estima do povo. Quem já
experimentou o preconceito sabe _a discriminação por origem social, tão
típica da estrutura da sociedade brasileira. É mais do que saudável que o
poder mude de mãos: especialmente num país sempre dominado por uma
elite sem nenhuma simpatia humana, de uma perversidade e de um egoísmo
sem par no mundo.
É proibido comemorar, mas eu vou comemorar: ao menos pela menina "Te",
de quatro anos de idade, que conheci num casebre de taipa em Cruzeiro do
Nordeste (município de Sertânia, a 350 km de Recife) em 2001. "Te" era o
apelido dela que não tinha nome ainda, não tinha certidão de
nascimento, não tinha nacionalidade, não tinha país, não existia para o
Brasil e seu censo. Não merecia nenhuma simpatia humana da parte desses
governantes insensíveis, eruditos urbanos empertigados ou usineiros
exploradores. "Te" estava doente, eu acho. Não parava de chorar quando a
conheci, a não-sei-que-nascimento na fila de uma carrada de sete filhos
de um casal analfabeto, que passava o mês todo com os R$ 80 que o chefe
da família então ganhava carregando estrume para fazendeiros da região.
"Te" era apenas esse monossílabo, seminua, suja, talvez faminta
chorando no meio da casa.
Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU: "Artigo 21 - 1. Toda
pessoa tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente
ou por intermédio de representantes livremente escolhidos."
É proibido comemorar, mas eu vou comemorar: por um raio de esperança ao
menos para essas tragédias nordestinas, a de "Te", a de Lula, a de Irene
(que morreu alcoólatra e empregada doméstica a um salário mínimo
mensal), a Mmarilene inha mesma. Se eu fosse dez anos mais velha, talvez
tivesse vindo para São Paulo sacolejando na mesma boléia de um
pau-de-arara. Vim 15 anos depois de Lula, mas de ônibus, da viação São
Geraldo ou Itapemirim, não me lembro. Tive mais sorte, vim na poltrona
já estofada do ônibus, numa viagem que durou quatro dias, ao invés de
13. Tive mais sorte, fiz curso superior.
É proibido comemorar porque jornalistas não comemoram, criticam. Mas
cada coisa a seu tempo. Não faltarão críticas. Mais do que isso: há
fascistas e neo-fascistas à espreita país afora. Farão de tudo para
aterrorizar e destruir.
No momento, comemoro, faço do português o inglês (para o mundo entender)
que me ensinaram por sorte na universidade e digo como a atriz Marilyn
Monroe disse ao presidente Kennedy, num dia de aniversário: "Happy
birthday, Mr. President!", pelos mais de 50 milhões de votos.
Um comentário:
Já passou da hora de democratizar a mídia. A Folha pode ter a opinião que quiser. O Estadão também. Mas eles não podem ser as únicas vozes que têm acesso ao grande público. Já no caso das emissoras de rádio e tv, a questão é outra: trata-se de CONCESSÕES PÚBLICAS que, por lei, não poderiam emitir opinião. Em 2015, precisamos debater a Lei Geral das Comunicações. A que foi aprovada na Inglaterra é um ótimo ponto de referência.
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