Doutor Simpatia |
Toda generalização é perigosa, inclusive essa, mas se houve uma
categoria que surpreendeu nessas eleições é a dos médicos. Não
necessariamente pelas melhores razões.
Desde a gritaria xenófoba com os cubanos do programa Mais Médicos até as recentes manifestações de ódio aos nordestinos — uma senhora sugeriu um holocausto na região —, eles foram responsáveis, em sua grande maioria, por um vale de lágrimas.
O corporativismo deu as caras de um jeito feio, sujo e malvado. No
domingo passado, desembocou no apoio da Associação Médica Brasileira a
Aécio, que afirmou que não vai, se eleito, “financiar a ditadura cubana,
como ocorre hoje”. O que ele pretende “é que não haja mais necessidade
de estrangeiros no Brasil.”
O maluco que chamou Dilma de “grande filha da puta” nas redes sociais
não é uma exceção. Milton Simon Pires, de Porto Alegre, recebeu uma
advertência carinhosa do presidente do Conselho Regional do Rio Grande
do Sul (Cremers), Fernando Weber Matos. Não se trata de um problema
“ético” e Milton não estava fazendo aquilo como profissional, mas como
cidadão. Vai saber o que é problema ético segundo esse pessoal.
Pires é uma figurinha conhecida na direita lelé. Conseguiu fazer uma
releitura do juramento de Hipócrates, amplamente compartilhada por seus
amigos. É assim: “Juro por Deus, juro como médico, como homem e como
brasileiro, não dar um minuto de trégua, de paz ou de descanso a essa
organização criminosa e associada ao narcotráfico que humilhou minha
profissão perante os médicos de todos os outros países — o Partido dos
Trabalhadores. Nem todas as enfermeiras, técnicos, fisioterapeutas e
psicólogos do país juntos vão conseguir me parar!”
Como é que um sujeito desses pode atender alguém se está tão ocupado
combatendo o Mal Supremo? E se o paciente — cliente, segundo a nova
nomenclatura — for, que azar, petista? O que Simon faz? Deixa gaze no
abdômen? Se recusa a atender? Doctor Simon é chegado de Lobão e já
participou de um de seus famigerados hang-outs. Os dois dividem a mesma
paranoia anticomunista.
Houve algumas tentativas de correção de rota. Tímidas. No ano
passado, num debate sobre o mercado de trabalho na Fundação Getúlio
Vargas, em São Paulo, Miguel Srougi, professor titular de urologia da
USP, ensaiou um mea culpa. “Erramos. Não soubemos fazer o diagnóstico da
situação. A população ficou contra a gente”, disse, sobre os ataques
ao Mais Médicos.
Alguns de seus colegas admitiram o “grande equívoco”. “Tive vergonha”,
afirmou o professor de patologia da USP Paulo Saldiva, se referindo à
histeria nos aeroportos.
Não durou muito tempo. Com a ascensão do aecismo furibundo, os homens
de jaleco se sentiram à vontade para berrar seu preconceito. Um grupo
criado no Facebook que recebeu o nome “Dignidade Médica” reuniu um
número assombroso de mentecaptos falando, por exemplo, na “necessidade
de sermos terroristas para nos colocar no nível de conversa que pobre
entende”
A Procuradoria-Geral da República (PGR) acabou recomendando a
instauração de procedimentos criminais ou administrativos contra os
autores dos posts.
No início do mês, folhetos foram distribuídos entre a classe em Minas
Gerais. O texto tinha como título “Sou médico, não voto PT”. Treze
nomes conhecidos assinavam a peça, que declara a necessidade de “banir o
PT do poder”.
Não havia nada mais importante para fazer? Na sexta (17), o Ministério
Público de Minas ajuizou uma ação contra o governo por suposta fraude
orçamentária nos gastos com saúde durante a gestão de Aécio, de 2003 a
2010. É requisitado o ressarcimento aos cofres públicos de 1,3 bilhão
de reais.
O estado também é acusado de maquiar outros 4,3 bilhões que deveriam
ter sido gastos entre 2003 e 2008. Uma promotora propôs, em 2010, uma
ação de improbidade administrativa contra Aécio.
Não houve protesto, não houve nada. O importante, para eles, é fazer
proselitismo eleitoral de baixo nível. A saúde que se exploda. 2014 será
lembrado como o ano em que Mister Hyde prendeu Doutor Jekyll no
armário e saiu para passear pelo país tocando o terror branco.
Kiko Nogueira
No DCM
Ainda do Blog CONTEXTO LIVRE.
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